quinta-feira, 21 de maio de 2009



“O NEVOEIRO”

"O povo sai correndo atrás do primeiro que lhe acena com uma espada ou uma cruz."

Um homem trabalha, tranquilamente, no seu estúdio doméstico. Sobre um cavalete, mostra-se um personagem do filme que está esboçando. Lá fora é noite. Uma forte tempestade se inicia. Falta a energia. Tudo escurece.
A sua mulher e o seu filho de 8 anos, vão ao seu encontro, amedrontados. Ouvem-se, sentem-se, vêem-se… raios, trovões, uma chuva monumentalmente torrencial e o balanço feroz de uma gigantesca árvore. Paulatinamente, a câmara sai deste cenário e entra na casa.
Os três, ali estão, mudos, de olhos esbugalhados, de costas uns para os outros e, sem mais, estáticos, olham pela janela. Decorrendo sem diálogo, esta cena imediatamente nos diz que algo de terrível vai acontecer. Eis o início do filme "O Nevoeiro" ("The Mist"), de Frank Darabont (2007), baseado num conto de Stephen King.
O cineasta afirma-se como um antigo admirador do escritor, considerado o mestre do "terror moderno". A parceria começou em 1983, quando Darabont, apenas com 24 anos, dirigiu a elogiada curta-metragem, "The Woman In The Room". Durante 30 minutos, um homem assiste à agonia e à morte da sua mãe. A história é baseada na experiência do próprio Stephen King.
Em 1994, dirigiu e adaptou para o cinema uma outra curta história, "Rita Hayworth and Shawshank Redemption", a qual se tornou na longa-metragem, "Um Sonho de Liberdade" (“Shawshank Redemption”), brilhantemente interpretada por Tim Robbins e Morgan Freeman.
Em 1999, Frank Darabont, voltou a filmar mais uma narrativa de King, “Á Espera de Um Milagre" ("Green Mile"), protagonizada por Tom Hanks. Com mais adaptações igualmente bem sucedidas por outros realizadores – “Carrie, A Estranha" (1976), "O Iluminado" (1980), "A Hora da Zona Morta" (1983) – Stephen King aventurou-se a dirigir aquele que seria seu único filme, "Comboio do Terror" ("Maximum Overdrive"), de 1985. Logo viu que não era Brian de Palma, nem Stanley Kubrick.
O conto "O Nevoeiro" faz parte do livro "Tripulação de Esqueletos", escrito por King, em 1985. Há anos que Frank Darabont acalentava o sonho de o adaptar para o cinema. Quiçá transformar esta obra num extraordinário filme. Stephen King, de bom grado, garantiu-lhe os direitos: “Nós dois combinamos. Somos como chocolate e pasta de amendoim”.
Graças a associações acertadas, apesar do prazo curto e do baixo orçamento, Darabont consegue fazer o filme, que adquire características de terror B, embora muito bem realizado. O realizador é assumidamente apaixonado pelo género.
Como na grande maioria dos filmes de terror, as criaturas monstruosas, criadas em computador ao livre correr da imaginação do seu autor, também estão presentes. Os efeitos especiais apenas têm como objectivo integrar os monstros na cena, meros bonecos que interagem com os actores e, de um modo mais indirecto com os espectadores: trabalhando com uma câmara ora frenética e claustrofóbica, ora observadora e mais calma, o realizador consegue, de facto, colocar o público dentro da cena.
Esta obra possui todos os clichés de um filme de terror clássico, incluindo os sustos previsíveis, as conspirações secretas e os personagens estereotipados: o céptico arrogante, a fanática religiosa, a velhinha sábia e esperta, o falso valentão e, obviamente, o herói bom e corajoso, moldados, envolvidos, ou até mesmo atormentados com o comportamento desse pequeno microcosmos pressionado pelo medo. Não é em vão que King fala sobre o seu trabalho deste modo: “Interesso-me por pessoas boas em situações nocivas, por pessoas comuns em situações extraordinárias.”
O que ocorrerá a seguir é, exactamente, o desenvolvimento dessa ideia: depois da violenta tempestade, a pequena localidade no Maine está devastada. O ilustrador David Drayton (Thomas Jane) e o filho Bill (Nathan Gamble) vão a um mercado para comprar suplementos. Porém, um estranho nevoeiro toma conta da cidade e de ambos, conjuntamente com um grupo de pessoas que ficam presos no mercado. No seu exterior, há uma movimentação atípica de carros de bombeiros e de viaturas policiais.
A tensão está no ar. Repentinamente, todas as atenções se voltam para um homem idoso, Dan (Jeffrey De Munn), um habitante local que chega aos gritos: “Há uma coisa no nevoeiro. Uma coisa no nevoeiro apanhou John Lee!” A partir deste momento, assistimos a um caos crescente: aranhas gigantes, polvos assassinos e insectos assustadores tentam atacar todos os presentes, dentro e fora do mercado, capturá-los, devorá-los.
Todos permanecem encurralados no mercado. As hipóteses de fuga são cada vez menores. Não há saída possível. E o medo cresce dentro de cada um, de um modo cada vez mais intenso, completamente aterrador. Um estado de pavor e de pressão gigantesca apodera-se de todos. Começam a desmoronar, lentamente. Tudo desaba, sem nada poderem fazer. É a clarificação da impotência do humano, face às forças que lhe são superiores; a exemplificação da sua infinitude, pré-determinada, seja lá por aquilo que for, ou, se preferirmos, da sua insignificância que mostra quanto a arrogância não tem qualquer espécie de sentido.
O diálogo entre Amanda (Laurie Holden) e David (Thomas Jane) é o prenúncio do que vai acontecer: “As pessoas são, de um modo geral, boas e decentes. Meu Deus, David, somos uma sociedade civilizada", afirma ela. "Isso enquanto tudo funciona e tu podes chamar a polícia. Mas se as colocares no escuro, deixando-as assustadas, sem regras, surpreender-te-ás aos verificares o quão selvagens se podem tornar”, responde ele.
Dentro do mercado a situação é, cada vez mais, insustentável. Conflitos pessoais entram em cena pela parte de uns, juntamente com a arrogância e a ignorância de outros, sem contar com o oportunismo da religiosa fanática Mrs. Carmody (Marcia Gay Harden), que monopoliza metade dos presentes, convencendo-os de que se trata de um castigo divino, do juízo final. E essa pequena comunidade, que se formou involuntariamente no seio de uma certa histeria colectiva inconsciente, vai-se conformando, anómala. A cada momento decorrem cenas de uma verdadeira barbárie, culminando, amiúde, com o sacrifício humano e a execução sumária.
O surgimento de feras humanas não é novidade no cinema. Todos o sabemos. Desde "De Dogville", dirigido por Lars von Trier, a o "Ensaio Sobre a Cegueira", de Fernando Meirelles, constatamos que os seres humanos, ditos civilizados e, até mesmo, generosas, rapidamente se transformam em outros de si mesmos defronte do estranho e do desconhecido.
A vida em comunidade, onde parecia haver equilíbrio e bom senso, torna-se fadada ao insucesso absoluto, ao menor sinal do inusitado. O que dizer, então, quando se está diante do perigo? É inevitável, é histórico, é humano. Em "O Nevoeiro"a situação é similar. Repete-se, como em todas as circunstâncias do género, sempre que o horror se instala, irremediavelmente.
A fala do funcionário Ollie (Toby Jones) é assustadoramente lúcida: “Como espécie, somos basicamente loucos. Junte mais de dois de nós num quarto, escolheremos um lado e inventaremos razões para nos matar uns aos outros. Porque acha que inventámos a política e a religião?”.
O desenlace é absolutamente desesperador. Como que por encanto, um abominável monstro, que se aproximava, ameaçadoramente, do carro onde se detinha David, o filho e três companheiros de fuga, desaparece. O nevoeiro dissipa-se. Finalmente, somos capazes de ver centenas de pessoas a salvo em carros do exército.
David é o único sobrevivente do seu grupo. Pouco antes, tinha matado todos os outros, incluindo o seu filho mais novo. Assim pensou proteger todos eles da terrível morte nas garras dos monstros. Quando o filme termina, os momentos de terror e escuridão de David estão apenas no seu início!
“A civilização é um verniz muito fino e pode rachar na presença do medo.” Esta declaração de Frank Darabont, convictamente assumida, ecoa de modo atemorizador nos nossos espíritos. Sabemos que jamais é necessário o ataque de um monstro qualquer para que a Humanidade perca o rumo, para que se extravie completamente, ou adquira um olhar nublado e, pouco a pouco, se torne, claramente, cega.

Ficha técnica: "O NEVOEIRO" ("THE MIST"), 2007.
Dir: Frank Darabont.
Com Thomas Jane, Toby Jones e Márcia Gay Harden, nos principais papeis.

Para mais informações: "Centro de Estudos Upianos"

Isabel Rosete
(investigação, adaptação e divulgação)

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