quinta-feira, 21 de maio de 2009




"71 Fragmentos de uma cronologia do acaso – Notícias de uma guerra particular"

“O que parece tão horroroso, tão incompreensível de longe, simplesmente acontece. Quieta e naturalmente. Então, a pessoa deve ficar continuamente em guarda. Foi o que aprendi.”
MATHIEU CARRIÈRE em O JOVEM TORLESS / DER JUNGE TÖRLESS (1966) dir: Volker Schlöndorff


“Falamos muito e não comunicamos nada.” Assim o diretor Michael Haneke se refere ao ser humano e a qualquer núcleo onde ele está presente. Não por acaso seu cinema aborda a falta de comunicação, a violência e o isolamento do homem moderno.

"O Sétimo Continente" /"Der Siebente Kontinent" (1989), "O Vídeo de Benny"/"Benny's Video" (1992) e 71 "Fragmentos de Uma Cronologia do Acaso" /"71 Fragmente einer of a Cronology des Zufalls" (1994), formam a trilogia da incomunicabilidade do diretor e roteirista que nasceu na Alemanha em 1942 e tem cidadania austríaca. Haneke estudou Filosofia, Psicologia e Teatro em Viena, e além de fazer filmes, já encenou várias peças teatrais pela Europa.

Para o diretor, a maioria dos filmes, em particular os pertencentes ao mainstream, mostra de maneira muito ostensiva, ou melhor, por demais explicitadas, as questões da falta de comunicação, da solidão e, em especial, da violência. Segundo ele, a violência é um prato cheio para o cinema comercial; ela é usada para empanturrar o público, encher seus olhos e, conseqüentemente, satisfazê-lo. Quem conhece a filmografia de Haneke pode estranhar essa colocação, pois ele compõe personagens impregnados de grande violência, capazes de gestos e atitudes de uma brutalidade impressionante. Nos seus filmes, no entanto, desconhecemos a gênese desta violência, não identificamos - pelo menos, não imediatamente - sua origem, o que gera inquietação e não uma sensação de empanzinamento.

Haneke considera que vemos muito pouco do todo, no cinema. Portanto, a melhor maneira de fazer o espectador enxergar é através da estrutura do filme, da forma adotada para contar a história. E, para ele, “a fragmentação é a única maneira de abordar um tema com sinceridade ”. Em "71 Fragmentos de Uma Cronologia do Acaso" o diretor opta inteiramente pelo fracionamento das histórias.

Logo no início do filme ficamos sabendo que, na véspera do Natal de 1993, Max, um estudante de 19 anos, matou três pessoas numa agencia bancária em Viena e depois se suicidou com um tiro na cabeça.

Na primeira cena vemos imagens de um telejornal relatando conflitos entre os EUA e a Somália. (Corte) Um menino atravessa um rio, caminha pelo mato, chega à beira de uma estrada, entra num caminhão sem ser visto e viaja por uma auto-estrada. (Corte)

Um jovem realiza um arrombamento, rouba várias armas e as coloca numa bolsa de plástico. (Corte) Um homem levanta de manhã cedo, encontra a mulher cuidando da filha recém-nascida que está com febre alta. Ele sai para o trabalho e a mulher chora. (Corte) O mesmo menino que entrou no caminhão já está nas ruas e come alguma coisa que retirou da lixeira. Algumas pessoas o olham de dentro de um carro. Ele segue seu caminho. (Corte) Dois estudantes estão em seu quarto e um deles tenta montar um quebra-cabeça. Não consegue. O outro realiza a tarefa e lhe cobra uma aposta. (Corte)

Um casal visita um orfanato e tenta sem muito sucesso fazer contato com a menina que querem adotar. (Corte) Num banco, o pai da recém-nascida, que é segurança de um carro-forte, faz a entrega. Uma funcionária do banco assina o protocolo de entrega da carga. Ela volta para atender o público, inclusive seu pai que está na fila e quer conversar. Ela o despacha. Está trabalhando, preocupada com a transação que está sendo feita. Vê um colega de trabalho ao telefone fazendo o sinal da cruz. (Corte)

O menino clandestino observa um pai que brinca com seus filhos e o cachorro num parque. O pai deixa seu casaco vermelho no banco para poder jogar bola. (Corte)

Ao ver o tumulto no corredor de seu prédio, Max, um dos estudantes, deixa seu apartamento, entra num outro vazio, chega à janela e olha para baixo. Desce e, embaixo do prédio, olha para cima, em direção da mesma janela onde estava, e depois para rua, onde se vê o desenho de um corpo feito a giz. (Corte) Um velho, pai da bancária, em seu apartamento, prepara sua refeição, sozinho, ao som da televisão. (Corte)

O jovem clandestino vaga pelas ruas vestido com o casaco vermelho. Rouba uma revista do Pato Donald. (Corte). Sentado no chão, lê a revista numa enorme área interna do metrô. (Corte) Um homem joga pingue-pongue compulsivamente contra uma máquina. (Corte)

O filme segue com várias pequenas seqüências das vidas desses personagens, obedecendo sempre a uma mesma estrutura. Cada fragmento tem a duração aproximada de um a três minutos. As cenas são interrompidas, ou melhor, finalizadas com cortes secos, e entre algumas são inseridas notícias do mundo através dos telejornais. Os programas noticiam os últimos atentados do IRA, uma greve dos funcionários da Air France, conflitos entre o Hezbollah e israelenses e entre sérvios e croatas, Michael Jackson acusado de abuso de menores, entrevista com um menino de Bucareste, que vive clandestinamente em Viena.

No mundo real, através dos telejornais, testemunhamos a tragédia, a infâmia e a violência que há pelo mundo afora. Na ficção, acompanhamos fatos prosaicos e corriqueiros de pessoas comuns. No entanto, aos poucos, esses fatos cotidianos, aparentemente inofensivos, começam a gerar uma sensação perturbadora. Quando as notícias dos jornais são introduzidas temos a impressão de que aquelas cenas rotineiras, comuns ao dia-a-dia de qualquer um de nós, contém uma violência latente e tão nefasta e trágica quanto à anunciada pela televisão. O velho pai fala com a filha ao telefone, a menina órfã vai para a casa dos futuros pais, o estudante liga para a mãe, o casal, pais da recém-nascida, jantam juntos. Não há calor nessas cenas, apenas uma incomunicabilidade inexplicável. Elas ilustram perfeitamente outra frase de Haneke: “ Quanto mais próximos, menos nos comunicamos”. O diretor não está preocupado em mostrar a origem das tensões e da violência oculta. O filme simplesmente produz reações e sentimentos no público, e o faz eminentemente pelo modo como constrói a narrativa. Em entrevista sobre o filme, Haneke disse: “ Com a soma dos fragmentos o espectador tem a possibilidade de eleger, de trabalhar com sua própria experiência.” Ele quer extrair uma reflexão própria de cada espectador e não apresentar motivos pro que quer que seja.

Quando o filme termina, as perguntas estão sem respostas, e nosso estado é de total desamparo e perplexidade. Alguém já disse que um bom filme começa quando acaba. A respeito do belo final de Ladrões de Bicicleta, o cineasta Gianni Amelio declarou que no momento em que o menino Bruno dá a mão ao pai, aquela cena faz nascer no espectador um novo filme. Quando 71 Fragmentos... termina, talvez um novo filme também esteja começando para cada espectador. Um filme feito com os meus, os seus, os nossos cacos.

Isabel Rosete
(investigação, adaptação e divulgação)

Para mais informações: "Centro de Estudos Claudio Ulpiano"

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