quinta-feira, 21 de maio de 2009



"Longínquo / Uzak - Almas desesperadas"

“Às vezes tenho medo de construir estas paredes. Eu com a picareta e o cimento. E você, com o seu silêncio. Uma vala tão funda que te empurra para um longo esquecimento…” VENTURA em JUVENTUDE EM MARCHA (2006) dir: Pedro Costa

O filme "O Silêncio", de Ingmar Bergman, foi o responsável pelos caminhos do cinema do turco Nure Bilge Ceylan. O engenheiro de formação e ex-fotógrafo já havia se encantado com a autobiografia de Roman Polanski, mas quando, aos 16 anos, assistiu ao filme do diretor sueco, viu que a sétima arte não era só diversão e isso o fez estudar cinema na Universidade Minor Sinai, em Istambul. O admirador de Ozu e Wim Wenders dirigiu Kasaba, seu primeiro longa, em 1997.

Assim como John Cassavettes e Robert Guédiguian, Ceylan trabalha sempre com o mesmo elenco, que é composto, na maioria das vezes, de seus familiares e amigos. Ele diz que prefere filmar seres humanos a atores. Sua filmografia alimenta-se de Antonioni, Angelopoulos e Tarkovsky.

"Longínquo"("Uzak"), filme de 2002, mostra o convívio de um fotógrafo divorciado com o primo que veio do interior procurar trabalho em Istambul, e que ele recebe a contragosto. O diretor vai vasculhar o interior dos personagens através das imagens. Os poucos diálogos são corriqueiros e banais. Segundo Ceylan “a maioria das pessoas mente ”. A verdade estaria naquilo que não é dito, mas captado nas expressões dos rostos e corpos. Sua câmera penetra os personagens e é assim que os expõe. O diretor quase não usa grandes planos. “ Mais do que escolhas técnicas, são escolhas morais ” - ele justifica. Prefere não alimentar a passividade do espectador.

Logo no primeiro plano, aberto e fixo, ficam claros os alicerces estéticos do filme. O essencial virá dos movimentos de câmera e enquadramentos rigorosamente planejados. Provavelmente Ceylan partilha do pensamento do diretor iraniano Abbas Kiarostami de que ao enquadrarmos um objeto, ele imediatamente ganha um valor adicional.

O fotógrafo Mahmut (Muzaffer Özdemir) vive sozinho em seu apartamento. Faz suas refeições, realiza suas experiências fotográficas, assiste televisão, tudo absolutamente só. Seu primo Yusuf (Emin Toprak), desempregado, chega do campo e instala-se em sua casa enquanto tenta arrumar trabalho. A solidão parece não incomodar Mahmut. Ele tem seus hábitos e está acostumado a não interagir com ninguém. Yusuf, diferentemente, quer se comunicar. Perambula pelas ruas atrás de emprego, mas também de companhia. Ele observa as pessoas, principalmente as mulheres. Também está só, mas quer contato.

O inverno inclemente em Istambul parece dificultar mais ainda a aproximação com as pessoas. A neve cobre as árvores, os edifícios, os carros, os bancos de praça. A escolha em ambientar o filme nessa estação do ano não é aleatória. O tempo invernoso funciona como correlativo dos estados da alma dos protagonistas. Assim como o turco Ceylan, o diretor francês Alain Resnais também situou seu filme Medos Privados em Lugares Públicos (Coeurs) de 2006 num rigoroso inverno em Paris. As mal sucedidas tentativas de seis pessoas em busca do amor são ainda mais tristes e melancólicas debaixo do frio penetrante que invade os lares e o espírito dos personagens. Em Uzak, as relações não são diferentes. Mesmo ao demonstrar simpatia e boa vontade, Yusuf esbarra na intolerância e introspecção de Mahmut. Ele passa os dias meditativo, ou sentado sozinho num café. Em casa, entre um filme de Tarkovsky e algum pornô, implica com os pequenos desleixos do primo provinciano.
Irrita-se com o cheiro de seus sapatos, de seu cigarro e até com suas demonstrações de afeto. Yusuf continua sua empreitada em busca de trabalho. Quer ser marinheiro, o que para ele significa dinheiro e liberdade. O primo questiona sua escolha, mas ele contesta: “ Eles vêem o mundo. Você já esteve em toda parte. Por que não eu?”. Além disso, precisa socorrer a família que passa por dificuldades financeiras. A fábrica em que trabalhava fechou. Não tem mais opção no interior e voltar está fora de cogitação. No entanto, começa a constatar que na cidade grande as chances não são melhores, e conta ainda com a hostilidade de Mahmut.

O clima gelado e invernal visto pela janela é o mesmo dentro do apartamento. Os primos apenas coabitam o mesmo espaço. Não partilham nada. Um é exatamente o oposto do outro. Mahmut acompanha a mãe no hospital e em casa apenas por dever. Não demonstra envolvimento algum. Yusuf, ao contrário, preocupa-se com a dor de dente da sua mãe, e se enfurece ao saber que ela não pode ser tratada por falta de dinheiro.

A relação com mulheres reais não faz parte da vida do fotógrafo e quando ela se dá é desastrosa. Seu último elo afetivo, a ex mulher Nazan (Zuhal Gencer), partiu de Istambul.

Yusuf, por sua vez, procura a efervescência das ruas, quer integrar-se, mas não consegue. Acaba por ficar tão à margem quanto na casa do Mahmut.

A certa altura, Mahmut percebe a situação difícil do primo e, num laivo de compaixão, ou talvez somente por praticidade, convida-o para auxiliá-lo numa sessão de fotografia mediante remuneração. Logo fica evidente o fracasso da iniciativa. Mahmut não tem nada a oferecer, é de uma aridez interior impressionante, é custoso para ele acolher o primo. O convívio dos dois fica cada vez mais difícil, habitam mundos muito distantes. Mahmut está carregado de desilusão e é uma presença pesada até para seus amigos. Numa cena em que estão reunidos, um deles, provavelmente fotógrafo também, provoca Mahmut: “ Já esqueceu a nossa escalada ao topo do Rehcko para conseguir um bom plano do Vale Branco? Você costumava dizer que depois faria filmes como os de Tarkovsky. Como pode por uma cruz sobre seu passado?” Fica evidente que Mahmut vive uma profunda crise existencial, que em algum momento, no meio do caminho, desistiu de seus sonhos. Yusuf, por sua vez, ainda luta. Enquanto para um o tempo urge, o outro só quer prolongá-lo.

A tensão entre os dois aumenta quando Mahmut dá falta de um relógio e fica claro que ele desconfia de Yusuf. Mesmo depois de encontrar o objeto, não conta ao primo, deixando-o desconfortável e constrangido. Finalmente Yusuf não suporta mais a atmosfera pesada em que estão mergulhados e deixa a casa de Mahmut. Mesmo sem grandes discussões ou confrontos, ambos experimentavam o desespero diariamente e já não se toleravam mais.

O diretor conseguiu extrair uma interpretação excepcional dos protagonistas, destituída de excessos dramáticos, baseada na concentração. As encenações, embora econômicas, nos levam a enxergar com clareza e precisão a extrema clausura em que vivem os personagens, confinados em frustrações e desilusões que impossibilitam qualquer diálogo e troca entre eles.

Mahmut está só novamente. Nunca deixou de estar. Uma solidão bem-vinda, conveniente. Sua companhia é o som das ondas do mar, dos pássaros e do vento. O resto é silêncio. Silêncio que eleva o cinema de Nure Bilge Ceylan a um alto nível de expressão e comunicação artística e nos conduz, nós, espectadores, à reflexão e ao pensamento.

Isabel Rosete
(investigação, adaptação e divulgação)

Para mais informações: "Centro de Estudos Claudio Ulpiano"

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